Em defesa dos adjetivos

>> segunda-feira, 30 de abril de 2012

Feriado prolongado. Resolvemos emendar o feriado de 1º de Maio - Dia do Trabalho - vindo para a praia e ao invés de trabalhar, descansar. Perfeito, mas acho que quando dissemos que queríamos descansar no feriado, um anjo passou por perto e levou o nosso pedido a sério: Eles querem descansar? OK........ Chuva, chuva fina, chuva pesada.
(Pretensão a minha não é, achar que é privilégio meu os anjos me atenderem).
Em todo caso, está chovendo muito, então estou com tempo para entrar nos blogs, para ler, e porque não, estudar um pouco ?
Adjetivos, o que seria da vida sem eles?

"O adjetivo é o imprescindível avalista da individualidade de pessoas e coisas; está para a língua assim como a cor para a pintura. O mundo sem ele é triste como um hospital no domingo".

Muitas vezes nos mandam cortar nossos adjetivos. O bom estilo, conforme dizem, sobrevive perfeitamente sem eles; bastariam o resistente arco dos substantivos e a flecha dinâmica e onipresente dos verbos. Contudo, um mundo sem adjetivos é triste como um hospital no domingo. A luz azul se infiltra pelas janelas frias, as lâmpadas fluorescentes emitem um murmúrio débil.
Substantivos e verbos bastam apenas a soldados e líderes de países totalitários. Pois o adjetivo é o imprescindível avalista da individualidade de pessoas e coisas. Vejo uma pilha de melões na bancada de uma quitanda. Para um adversário dos adjetivos, não há dificuldade: “Melões estão empilhados na bancada da quitanda.” Todavia um dos melões é pálido como a tez de Talleyrand quando discursou no Congresso de Viena; outro é verde, imaturo, cheio de arrogância juvenil; outro ainda tem faces encovadas e está perdido num silêncio profundo e fúnebre, como se não suportasse a saudade dos campos da Provença. Não há dois melões iguais. Uns são ovais, outros são bojudos. Duros ou macios. Têm cheiro do campo, do pôr do sol, ou estão secos, resignados, exauridos pela viagem, pela chuva, pelo contato das mãos de estranhos, pelos céus cinzentos de um subúrbio parisiense.
O adjetivo está para a língua assim como a cor para a pintura. O senhor do meu lado no metrô: uma lista inteira de adjetivos. Está fingindo que cochila, mas por entre as pálpebras semicerradas observa os colegas passageiros. De vez em quando, o sorrisinho arqueado nos seus lábios vira uma torção irônica. Não sei se o que há nele é desespero calmo, fadiga ou um paciente senso de humor que não se dobra à passagem do tempo.
O exército limita o contingente de adjetivos. Aos seus olhos descoloridos, apenas o adjetivo “mesmo” tem alguma graça. Os mesmos uniformes, os mesmos fuzis. Qualquer um que, voltando de exercícios militares e já à paisana, saia pela primeira vez para dar uma volta numa cidade de civis há de se lembrar da inacreditável explosão de adjetivos, cores, matizes, formas e diferenças com que foi saudado por um cosmos repleto de diferentes individualidades.
Vida longa ao adjetivo! Pequeno ou grande, esquecido ou corrente. Precisamos de você, esbelto e maleável adjetivo que repousa delicadamente sobre coisas e pessoas e cuida para que elas não percam o gosto revigorante da individualidade. Cidades e ruas sombrias se banham de um sol pálido e cruel. Nuvens cor de asa de pombo, nuvens negras, nuvens enormes e cheias de fúria, o que seria de vocês sem a retaguarda dos voláteis adjetivos?
A ética também não sobreviveria um dia sem adjetivos. Bom, mau, sagaz, generoso, vingativo, apaixonado, nobre – essas palavras cintilam como guilhotinas afiadas.
E também não existiriam as lembranças não fosse pelo adjetivo. A memória é feita de adjetivos. Uma rua comprida, um dia abrasador de agosto, o portão rangente que dá para um jardim e ali, em meio aos pés de groselha cobertos pelo pó do verão, os teus dedos despachados... (tudo bem, teus é pronome possessivo).

(Adam Zagajewaki - Revista Piauí, janeiro/11)


beijos e bom feriado

9 comentários:

Valéria 30 de abril de 2012 às 13:57  

Oi Macá!
É verdade! A vida ficaria sem colorido sem os adjetivos. Eu não sobreviveria sem eles, uso e abuso, se pudesse usaria vários para definir um substantivo.rsss
Beijinhos e uma ótima semana!

Lúcia Soares 30 de abril de 2012 às 19:43  

Que texto bom de ler, Macá.
Sou pelos adjetivos.
Beijo e bom descanso.

pensandoemfamilia 30 de abril de 2012 às 20:47  

Então vamos colorir o feriado com os adjetivos que considerarmos melhor. Enfim, sonhar é preciso. E deixa a chuva cair com seus pingos lindos, limpando as ruas das poeiras da vida.
bjs

Beth/Lilás 2 de maio de 2012 às 15:07  

Oi, Valéria!
Nossa, menina, como choveu lá em Petrópolis também! Mas, realmente nós descansamos, nem internet nos interessou.
Os adjetivos são imprescindíveis para que a vida fique mais bonita, colorida, etc e tal. Só não valem quando são para desmerecer algo ou alguém.
beijinhos cariocas

Sonia Guzzi 3 de maio de 2012 às 13:02  

Olá, Macá.
Um texto que instiga e faz refletir...
Bela escolha.
Gde abraço, em divina amizade.
Sonia Guzzi

Sonia Guzzi 3 de maio de 2012 às 13:03  

Olá, Macá.
Um texto que instiga e faz refletir...
Bela escolha.
Gde abraço, em divina amizade.
Sonia Guzzi

Luma Rosa 3 de maio de 2012 às 13:07  

A Revista Piauí foi bastante feliz em traduzir esse texto de Adam Zagajewski. Não conhecia esse texto. Dele, gosto da poesia. A maior parte do material que temos acesso foi do que ele disponibilizou em inglês, porque para traduzir do polonês deve ficar um tanto difícil.

"As manhãs são cegas como gatinhos,
as unhas crescem confiadamente, não sabem
ainda o que arranhar. São suaves
os sonhos e a ternura abatem-se sobre nós
como nevoeiro, como o campanário da catedral de Cracóvia
antes que o gelo a abrace."

O melhor dele é que parece não precisa subtrair-se para escrever e ser um personagem. Ele escreve como quem escreve um diário.

Nesse texto, seu olhar deu vida aos melões, usados para exemplificar os adjetivos. O olhar poético e contemplativo do escritor fazem dos singelos melões objetos de arte e reflexão, pois que passam a se assemelhar a seres humanos tão distintos entre si na aparência, mas tão iguais na essência.

Imagino como seria uma conversa entre Adam Zagajewski e Carlos Drummond de Andrade que escreveu em "Confissões de Minas":

"À medida que envelheço,vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a crer que tudo se pode dizer sem eles melhor talvez do que com eles. Por que 'noite gélida', 'noite solitária', ' profunda noite'? Basta ‘a noite’. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra noite"

Obrigada por trazer esse texto ao blogue. Muito boa reflexão!!

Beijus,

chica 3 de maio de 2012 às 16:26  

Que texto bem legal!! E que pena a chuvinha no feriado, mas... fazer o quê? beijos,tudo de bom, bom te ver!chica

Vera Lúcia 4 de maio de 2012 às 19:52  

Oi Macá,
Bem vinda ao meu recanto.
Adorei seu espaço e já estou ficando por aqui.

Bela defesa aos adjetivos! Também
os considero imprescindíveis. Creio até que faço uso exagerado dos mesmos.

Bom que choveu, pois seu descanso forçado nos proporcionou um belo texto.

Ótimo final de semana.

Beijo.

Related Posts with Thumbnails