Despedida

>> quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Não, não sou eu quem está se despedindo, e sim ele - Rubem Alves, e eu fiquei triste com a notícia, porque gostava muito de ler suas crônicas.

Então quero deixar aqui a sua "despedida" do jornal.
* * *

Minha alma é movida pelas ausências; mas, 
nos jornais, não há lugar para ressurreições

Rubem Alves

"ESSA CRÔNICA é uma despedida. Resolvi, por decisão própria, parar de escrever em Cotidiano.
     Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria Laselva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição. Nos aeroportos, vou sempre visitar a Laselva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Saio sempre desapontado.
     O outro sonho dos escritores é ter seus textos publicados num jornal importante: ser lido por milhares de leitores. O que significa reconhecimento duplo: do jornal que os publica e dos leitores. Isso faz muito bem para o ego. Todo escritor tem uma pitada de narcisismo.
     Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas..." E ele se pergunta se "não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas..." Respondo: Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas, agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.
     A obrigação: é isso o que pesa. Quereria ser capaz de viver um poeminha do Fernando Pessoa: "Ah, a frescura na face de não cumprir um dever... Que refúgio o não se poder ter confiança em nós..." 

     Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto -pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto-que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever.
     Não é qualquer coisa que se pode publicar num jornal. O próprio nome está dizendo: "jornal", do latim "diurnalis"; de "dies", dia, diurno; o que acontece no dia; diário.
     O tempo dos jornais é o hoje, as presenças. Mas minha alma é movida pelas ausências: nos jornais, não há lugar para ressurreições.
     Acho que aconteceu comigo coisa parecida com o que aconteceu com a Cecília Meireles. Escrevendo sobre ela, Drummond falou o seguinte: "Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito 'uma certa ausência do mundo'"?
     Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e os poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com "uma ausência que se demorava". E Rilke se perguntava: "Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?" O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo.
     O místico Ângelus Silésius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundos diferentes: "Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem". Jornais são seres do tempo. Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.
     E é por isso vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente..."


Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, 01/11/2011

beijos

6 comentários:

Roselia Bezerra 2 de novembro de 2011 às 16:50  

Olá, querida
Deve ter sido uma decisão discernida e cheia de sabedoria...
Mesmo com saudade da nossa parte... (como ele mesmo disse a respeito dela: houve amor na sua escrita... por isso ficamos assim...).
Bjm de paz

Luci Cardinelli 3 de novembro de 2011 às 05:08  

Querida, me emocionei lendo essa despedida. Depois da primeira emoção reli e meus pensamentos voaram em tantas coisas ditas por ele. Que bom que temos tanto que ele nos deixa, não é?

beijo carinhoso e ótimo dia!

bau da lola 3 de novembro de 2011 às 12:23  

Amei.
Obrigada por compartilhar. Autor delícia de ser lido.
Lola

pensandoemfamilia 3 de novembro de 2011 às 15:19  

É o meu escritor preferido. Ao mesmo tempo que é poeta, é crítico, e ainda, sempre atual.
bjs

sheyla xavier 3 de novembro de 2011 às 23:29  

Macá
Obrigada pela passadinha lá no meu meu blog e por ser minha seguidora, q honra!!! rsrs
OLha, a digitexto não tem URL, pra colocar no meu gadget?
bjokas

Beth/Lilás 11 de novembro de 2011 às 00:17  

Macá!
Eu não sabia disso, aqui no Rio não temos este jornal. Mas, até para se despedir este homem é sensacional e por isso sou sua fã ardorosa. Quanta coerência em suas palavras. adorei!
Ele se afasta dali, mas seus livros e palavras são consumidos diariamente nesta rede e isso é que importa.
um super beijo carioca

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