Quem protege as palavras?

>> quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Eu dei uma parada no trabalho, entrei no blog e já estava copiando o texto pra postar quando pensei: 
- Ele de novo? O que as pessoas vão pensar de eu colocá-lo novamente?
Toda semana agora?
Mas, pensei também: quando a gente gosta de alguém, não quer estar pertinho, sempre junto?
ou, quando apreciamos uma comida ou um doce, não estamos sempre comendo?
ou, quando gostamos muito de um lugar, não fazemos o possível pra estarmos sempre lá?
Então está decidido: Ele, Antonio Prata, estará sempre por aqui.
Vou contar uma coisa pra vocês. Todo dia quando desço para tomar café, o jornal já está ali na mesinha, e, às quartas-feiras a primeira página que abro pra ler, adivinhem o que é?
A coluna dele, claro. E hoje mais um artigo me encantou, tanto que estou pensando em fazer o que ele diz no último parágrafo. Vocês topam?
Leiam, e se concordarem, vamos ajudá-lo?


Os mercadores de Veneza
Chamar as prateleiras do supermercado de gôndolas é como construir prédios no meio do Ibirapuera
* * * * * * * * * * * * *
FOI COM GRANDE assombro e não menor repúdio que eu descobri, dia desses, que as estantes dos supermercados chamam-se gôndolas.
Até então, tinha cá para mim que gôndolas eram utilizadas única e exclusivamente para levar casais apaixonados, espiões russos e turistas japoneses pelos canais de Veneza. Jamais imaginaria que esse mesmo substantivo pudesse, encalhado num piso de linóleo e sob o tremelicar quase imperceptível das lâmpadas fluorescentes, sustentar pacotes de biscoito, caixas de sabão em pó, gordura vegetal hidrogenada.
     Nunca fui a Veneza. Talvez seja melhor assim. Sua existência, não confirmada pessoalmente, continua a fazer parte do meu imaginário infantil: a cidade cujas ruas são feitas de água está para São Paulo como os unicórnios para os cavalos, os vulcões para as montanhas, os dinossauros para as lagartixas. E, se o chifre do unicórnio não é qualquer chifre, mas uma lança espiralada, inexistente noutros animais, os barcos da cidade aquática tampouco poderiam ser meras lanchas ou canoas: são gôndolas, com suas pontas curvas como as dos sapatos do Sultão d'As Mil e Uma Noites, de Ali Babá e Seus Quarenta Ladrões, dos gênios que surgem da lâmpada, em meio à fumaça, prontos a realizar três desejos. Alguma semelhança com prateleiras de fórmica e aço inox, caro leitor? Não, não, eis aí um atentado contra a língua, um crime de lesa-poesia que deve ser reparado o quanto antes.
     Veja bem: as cidades têm regras para protegê-las da voracidade do mercado. Planos diretores, leis de zoneamento: ali pode prédio, aqui não. A propaganda tem leis para conter a falta de escrúpulos dos anunciantes: álcool não deve ser anunciado para menores de idade, cigarros estão proibidos de patrocinar eventos esportivos. O próprio mercado precisa ser regulado externamente. As palavras, contudo, quem as protege? Ninguém. Um dia, um infeliz decide batizar as estantes de gôndolas e pronto, o mal está feito.
     Trazer a gôndola dos canais de Veneza para as seções de laticínios é, para a linguagem, equivalente a construir um prédio no meio do Ibirapuera, para as cidades. Uma gôndola de supermercado, meus amigos, é um unicórnio abatido para, do marfim de seu chifre, arrancarem cinzeiros e bolas de sinuca.
     Minha bronca com esse sequestro semântico é tanta que, se nesta manhã fria, enquanto escrevo a crônica, me aparecesse um gênio da lâmpada, com seus gondulares sapatões, incluiria no pacote de desejos o pedido para que rebatizasse as prateleiras dos supermercados, restituindo assim à gôndola a grandiosidade arruinada por latões de óleo de soja e saquinhos de Miojo.
     Ou os mercadores dão às estantes um nome apropriado - estantário, prateleiral, "trúncio", por que não?- e devolvem à humanidade esse belíssimo substantivo, ou lançarei uma ampla contraofensiva na internet, com apoio de poetas, de escritores e da máfia italiana: passaremos a chamar cartão de crédito de avestruz, caixa registradora de asa-delta e crachá de buganville. Para cada grama de lirismo que nos foi roubado, um grama será devolvido, impiedosamente.
antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata 


beijos

8 comentários:

Bordados e Retalhos 24 de agosto de 2011 às 16:34  

Adorei Macá, por mim pode mandar sempre os artigos do Antônio. Viu? Já estou íntima. Bjs

Valéria 24 de agosto de 2011 às 20:56  

Oi Macá!
É sempre um prazer ler um texto do Antonio Prata! E um inteligente como este então. Pensando bem é um despautério chamar prateleiras de gôndolas que nos remete a uma paisagem romântica pelos canais de Veneza. Foge do bom senso.rsss

Beijos!

Vero Kraemer 24 de agosto de 2011 às 21:30  

Lindo texto, Macá!!!
Adoro todos que postas aqui!
Beijos
Vero

Beth/Lilás 24 de agosto de 2011 às 22:26  

Engraçado, Macá, eu também já parei para pensar porque este nome é dado às prateleiras do supermercado!!!
Mas, eu nunca pensei em tranformar isso numa crônica, por isso meus respeitos ao escritor que consegue arranjar para todo dia, um tema diferente, geralmente pescado por aí, pela vida, pelas coisas comuns que nos cercam.
beijinhos cariocas

Gina 24 de agosto de 2011 às 23:07  

Esse é o mérito de quem está sempre atento ao cotidiano e consegue transformar detalhes em crônica. Isso vale para os artistas também.
Respondendo à sua pergunta, os cursos de culinária são sempre válidos, pelas dicas que aprendemos com os chefs.
Bjs.

Deia 25 de agosto de 2011 às 20:25  

Aplaudo de pé: se o texto é bom, por que não? E a sensibilidade do autor, usando sua lente de aumento em algo que nos passa desapercebido há tantos anos! Brilhante! Beijo, Deia.

Celina Dutra 26 de agosto de 2011 às 04:14  

Macá querida,

Você tem razão em não resistir ao Antonio Prata. Ele é genial! Obrigada por nos trazê-lo sempre.

Girassóis nos seus dias.
Beijos

Anne Lieri 26 de agosto de 2011 às 17:46  

Macá,que texto excelente!Não é á toa que coloca sempre esse cronista!Realmente muito bem observado por ele:gôndolas são de Veneza,nos supermercados deveriam ser prateleiras...rss...ótima escolha e tb adorei seu blog!Bjs,

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