Eu, ela e o Keith
>> domingo, 5 de junho de 2011
"Se minha mulher caísse de amores por um arquiteto ou um advogado, acho que eu ainda poderia competir"
QUANDO ME PERGUNTAM "e aí, tudo bem?", eu respondo que sim, "tudo ótimo", mas é mentira. Não está tudo ótimo, está tudo péssimo: faz um mês, minha mulher se apaixonou pelo Keith Richards -e não tenho a menor ideia do que fazer.
A paixão foi despertada pela biografia do guitarrista, que eu mesmo, num desses irônicos maus passos da vida, lhe dei de aniversário. Cazzo, como eu ia imaginar que o livro do mais feio dos Rolling Stones, aquele ex-pirata bexiguento, pudesse fazer brotar em minha amada -uma moça fina, discreta e, até então, equilibrada- semelhante sentimento?
Não foi amor à primeira vista. No começo, ela ficou chocada. Enquanto lia, esticada no sofá, fazia caretas: "Nossa, que horror, ele comprou meio quilo de heroína!", "Uau, que imbecil, ele jogou uma faca no produtor!", "Que isso?! Ele deu um tiro no chão do hotel, porque o Charlie Watts tava fazendo barulho no quarto de baixo!".
Aos poucos, contudo, vi em seu rosto o asco se transformando em admiração, a delinquência sendo interpretada como liberdade. "Olha isso: eles voltavam de uma festa, muito loucos, lá na França, pegavam o veleiro do Keith e iam tomar café da manhã numa ilha!", "Putz, ele não tinha casa, morava cada semana com uma groupie diferente!".
Eu, da minha poltrona, um livro aberto no colo, um copo de Coca Zero na mão, a léguas de distância de groupies, heroína, facas e veleiros, apenas ouvia, apreensivo.
Ninguém é menos Keith Richards do que eu. Nunca briguei. Não discuto nem com flanelinha. Aventura, para mim, é ir até o Sesc Belenzinho, num domingo.
Se minha mulher caísse de amores por um escritor, por um arquiteto, um advogado, eu teria uma margem de manobra, talvez conseguisse mostrar que sou mais legal do que o outro, mas como competir com um cara que, aos 70, quebra a cabeça caindo de um coqueiro -e só se dá conta do estrago uma semana depois?
Será que era esse o tipo de homem que ela esperava que eu fosse, desde que nos conhecemos, há quatro anos? Será que, enquanto eu me esforçava para usar corretamente os talheres e não falar de boca cheia, ela sonhava com brigas de cadeirada e moshes de três metros de altura?
Quinze dias atrás, cansado de sofrer calado, não deixei que ela terminasse de me contar sobre uma suruba em Ibiza, em 1971; virei minha Coca como se fosse Jack Daniels e perguntei, na lata: "Você está a fim desse cara?". Passado o susto, ela assumiu. "Tô. Um pouquinho."
No bar, diante de uma cachaça, ouvi os consolos de um amigo. Essas paixões platônicas são muito comuns, me garantiu. Confessou-me que ele mesmo, ano passado, caiu de amores pela Lady Gaga. Depois esqueceu. Um conhecido nosso, disse-me, quase enlouqueceu com a Lídia Brondi na reprise de "Vale Tudo". "Pensa no lado bom: antes o Keith Richards do que o Capitão Nascimento, né?" Verdade.
Em breve, ele jurou, minha mulher terminará de ler a biografia e a paixonite sumirá, provando que três simples acordes de guitarra jamais abafarão a bela sinfonia que, ano após ano, lentamente, estamos compondo. Torço para que isso aconteça. (E para que Keith Richards resolva, qualquer dia desses, subir novamente num coqueiro).
Texto de Antonio Prata, publicado na Folha de São Paulo, caderno Cotidiano em 25/05/2011
beijos
QUANDO ME PERGUNTAM "e aí, tudo bem?", eu respondo que sim, "tudo ótimo", mas é mentira. Não está tudo ótimo, está tudo péssimo: faz um mês, minha mulher se apaixonou pelo Keith Richards -e não tenho a menor ideia do que fazer.
A paixão foi despertada pela biografia do guitarrista, que eu mesmo, num desses irônicos maus passos da vida, lhe dei de aniversário. Cazzo, como eu ia imaginar que o livro do mais feio dos Rolling Stones, aquele ex-pirata bexiguento, pudesse fazer brotar em minha amada -uma moça fina, discreta e, até então, equilibrada- semelhante sentimento?
Não foi amor à primeira vista. No começo, ela ficou chocada. Enquanto lia, esticada no sofá, fazia caretas: "Nossa, que horror, ele comprou meio quilo de heroína!", "Uau, que imbecil, ele jogou uma faca no produtor!", "Que isso?! Ele deu um tiro no chão do hotel, porque o Charlie Watts tava fazendo barulho no quarto de baixo!".
Aos poucos, contudo, vi em seu rosto o asco se transformando em admiração, a delinquência sendo interpretada como liberdade. "Olha isso: eles voltavam de uma festa, muito loucos, lá na França, pegavam o veleiro do Keith e iam tomar café da manhã numa ilha!", "Putz, ele não tinha casa, morava cada semana com uma groupie diferente!".
Eu, da minha poltrona, um livro aberto no colo, um copo de Coca Zero na mão, a léguas de distância de groupies, heroína, facas e veleiros, apenas ouvia, apreensivo.
Ninguém é menos Keith Richards do que eu. Nunca briguei. Não discuto nem com flanelinha. Aventura, para mim, é ir até o Sesc Belenzinho, num domingo.
Se minha mulher caísse de amores por um escritor, por um arquiteto, um advogado, eu teria uma margem de manobra, talvez conseguisse mostrar que sou mais legal do que o outro, mas como competir com um cara que, aos 70, quebra a cabeça caindo de um coqueiro -e só se dá conta do estrago uma semana depois?
Será que era esse o tipo de homem que ela esperava que eu fosse, desde que nos conhecemos, há quatro anos? Será que, enquanto eu me esforçava para usar corretamente os talheres e não falar de boca cheia, ela sonhava com brigas de cadeirada e moshes de três metros de altura?
Quinze dias atrás, cansado de sofrer calado, não deixei que ela terminasse de me contar sobre uma suruba em Ibiza, em 1971; virei minha Coca como se fosse Jack Daniels e perguntei, na lata: "Você está a fim desse cara?". Passado o susto, ela assumiu. "Tô. Um pouquinho."
No bar, diante de uma cachaça, ouvi os consolos de um amigo. Essas paixões platônicas são muito comuns, me garantiu. Confessou-me que ele mesmo, ano passado, caiu de amores pela Lady Gaga. Depois esqueceu. Um conhecido nosso, disse-me, quase enlouqueceu com a Lídia Brondi na reprise de "Vale Tudo". "Pensa no lado bom: antes o Keith Richards do que o Capitão Nascimento, né?" Verdade.
Em breve, ele jurou, minha mulher terminará de ler a biografia e a paixonite sumirá, provando que três simples acordes de guitarra jamais abafarão a bela sinfonia que, ano após ano, lentamente, estamos compondo. Torço para que isso aconteça. (E para que Keith Richards resolva, qualquer dia desses, subir novamente num coqueiro).
Texto de Antonio Prata, publicado na Folha de São Paulo, caderno Cotidiano em 25/05/2011
beijos
9 comentários:
Que texto delicioso, Macá.
Isso mesmo, delicioso! Uma pena ser tão curto. Isso aconteceu comigo e Robbie Willians, cantor. Ainda te conto num post. Meu marido quis me matar, enquanto eu já morria de amores pelo "Robbinho".
Beijos, querida
Que delícia de conto! Coisa tão boa de ler! beijos,lindo domingo,chica
Maca,
deu uma vontade ler a biografia do Keith!
bjs
Jussara
Bonito texto.
Abraço.
Macá, de quem é o texto? Adorei!
Muito bom mesmo!
Acho que não me apaixonaria por ele, nem platonicamente...rsrs Não acho a vida deles nem um pouco interessante, muito recheada de drogas para meu gosto!
Mas vá saber, né? O jeito é ler para ver.
Beijo!
Macá querida, adorei o texto!!!
Leve e gostoso!
te desejo uma semana iluminada, repleta de alegrias!!!
Beijossssssssssss
Vero
Um texto cheio de emoções e se apaixonar por algo assim, sei-lá mito estranho.Mas cada um tem seus gostos e seus valores...hehehe
Paz e bem
Macá,
Obrigada por esse presentão: GENIAL Antonio Prata!
Beijo
Que docinho, o Antonio Prata!! Achou uma forma maravilhosa de resenhar o livro! Até fiquei com vontade de também me apaixonar pelo Keith Richards ;) Beijus,
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